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extéril - antónio de sousa

Uma incessante deriva

A galeria enquanto jangada: Um projecto de António de Sousa, por Óscar Faria

Aos 27 anos, Henry David Thoreau decidiu construir uma cabana nas margens do lago glaciar Walden, onde viveu isoladamente durante dois anos, entre 1845 e 1847. Dessa experiência resultou aquele que é o seu livro mais conhecido: "Walden ou a vida nos bosques" (Antígona, 2009), publicado em 1854. Como nota Júlio Henriques, é nesse território que o escritor norte-americano irá aprender "que a arte de escrever e a arte de viver são inseparáveis." O responsável pela revisão e adaptação do livro para português, trabalho realizado a partir da tradução de Astrid Cabral, sublinha ainda que neste texto Thoreau se mostra "como exemplo de uma possível vida vivida 'com simplicidade e inteligência'." Próximo de Emerson, a quem pertencia o terreno onde ergueu a cabana, e do pensamento transcendentalista, Thoreau escreveu ainda "A desobediência civil" (1849), texto onde descreve a sua passagem pela prisão após ter recusado pagar impostos, uma atitude justificada pela sua posição contrária quer à guerra que opunha os EUA ao México, quer à escravatura. Essa experiência levou-o a reflectir acerca das relações entre o indivíduo e o Estado, propondo o direito à auto-governação como modo de enfrentar os abusos e injustiças do poder. O ensaio, que se inicia com a célebre frase "o melhor governo é o que governa menos", inclui ainda uma passagem onde Thoreau afirma: "Num governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um homem justo é também na prisão"

Estes dois textos encontram-se entre o material utilizado por António de Sousa (Matosinhos, 1966) para preparar a intervenção que apresenta na Galeria Extéril, um projecto de Teixeira Barbosa com dez anos de existência e sintetizado na frase "produzir o máximo com o mínimo" - o ponto em comum entre os trabalhos mostrados é uma estrutura portátil, um cubo com 2x2x2 metros; até 2005, as exposições tinham lugar numa antiga fábrica ocupada, situada na zona do Marquês, no Porto. Intitulada "Acerca da sobrevivência", a proposta actual pretende dotar o espaço expositivo de uma imaginada mobilidade - a arquitectura pré-existente foi colocada sobre paletes de madeira, às quais o artista adicionou outros materiais (fios, garrafas de água em plástico, uma cana com uma camisa a desempenhar a função de uma bandeira, etc.), de modo a sugerir uma jangada.

Segundo Michel Foucault, o barco, pedaço flutuante de espaço, é a heterotopia por excelência; é aí, nesse lugar de contestação não só mítica, mas também real dos territórios em que vivemos, que se situa, desde o século XVI, a "maior reserva de imaginação." Através da transformação da galeria em jangada somos convidados a ocupar um lugar vazio, o do náufrago. Pensar a partir dessa condição extrema e tantas vezes solitária - o filósofo alemão Hans Blumenberg define a modernidade como "naufrágio com espectador", título de um dos livros (Veja, 1990) - potencia o aparecimento de imagens provenientes de acontecimentos que vão do desaparecimento no mar da fragata Medusa, assunto pintado por Géricault entre 1817 e 1818 aos balseros cubanos, passando pelas tentativas de travessia do estreito de Gibraltar por cidadãos africanos que desejam trabalhar na Europa.

A jangada parece assim assumir não só uma função de espaço de resistência - é nessas construções precárias que os sobreviventes aos diferentes desastres jogam as suas vidas -, mas também de comentário ao actual momento da arte, cada vez mais necessitada de um lugar solitário, flutuante ou não, para evitar o naufrágio presente, entrevisto nas diferentes formas como hoje o fazer artístico se confunde, é confundido, com objectivos alheios - o turismo cultural, as indústrias criativas, os leilões, os fundos de investimento, os prémios patrocinados, a decoração de hotéis, a gastronomia, etc. Como escreve António de Sousa no curto texto que associa à sua intervenção: "Num contexto político, económico e cultural de crise, já de si adverso à experiência, este simbiótico corpo sobrevive devido à sua estranha natureza e à sua incessante deriva."

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