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• 1548. Francisco de Holanda e a Arte do Desenho.

CAPITULOS:
- A linha de inflexão maneirista.
- Ética e Política do desenho.
- A ideia-desenho.
- Arte da memória.

O «neo-platonismo» parece corresponder à prescrição de uma linha interna e subjectiva, claramente enunciada por Francisco de Holanda (1538-1584) nas suas «teses» sobre o desenho. É certo que Holanda admite que o artista possa inventar uma imagem sem alcançar a Ideia, mas a finalidade do verdadeiro artista é a de contemplar o Belo absoluto, a essência das formas, indistinta da Ideia. O furor criativo é o processo que permite ao artista aspirar e ascender à especulação e à contemplação da Idea, tornando possível desenhar segundo o «dom inato», a «reminiscência» e a «aspiração divina».

«Como neste ponto ele se tiver, porá velocíssima execução à sua ideia e conceito, antes que com alguma perturbação se lhe perca e diminua; e se ser pudesse pôr-se com o estilo na mão e fazê-la com os olhos tapados, melhor seria, para não perder, aquele divino furor e imagem que na fantasia leva» (1). Na imagem desconcertante do artista desenhando com os olhos vendados, Holanda dá a medida da transformação, operada pelos movimentos e «resistências» da linha serpentinata, que anuncia a ascensão e a queda da teoria «neo-platónica» do desenho (2).

Na realidade, a concepção «cega» da inspiração artística obedece ao delírio do amor divino, bem como à ruptura dos pressupostos da imitação externa. O desenho, de «velocíssima execução», insinua-se na ideia, na fantasia, contra o poder de negociação da retórica artistotélica, ou seja, contra a recaída nos efeitos e simulacros da mimésis. O desenho «imita-se a si mesmo» (3), no «recursado» (4) das suas intenções figurais e subjectivas, entre a «cegueira» (5) e a manualidade, entre a ideia e a execução, entre a abstracção e a empatia. A linha «maneirista» é o nome desta linha de inflexão que percorre a ideia, desdobrando-se e invertendo-se na imagem que a «fantasia leva», na imitação externa do real e do possível.

Na «teoria» e na prática, a inflexão da linha maneirista proposta por Francisco de Holanda, corresponde a uma presença nervosa, premida e deprimida, tal como o índice analógico da própria visão, que se vê a ver, reflectindo o ponto cego do olhar interior, na superfície visível das aparências exteriores que inventa. Do esquisso ao debuxo, a «maneira» neo-platónica configura este movimento de inflexão como pensamento do próximo ao afastado, do incorporado ao incorpóreo, do interior ao exterior, do «cego» ao visível, cada linha determinando a distinção e a relação entre o côncavo e o convexo, entre o dentro e o fora, entre «corpo» e «alma», entre ideia e desenho (6)

Na realidade, a linha do esquisso e do debuxo (7) serpenteia no pensamento, existindo como condição de abertura, como visão e acontecimento, inspirado, criativo, da relação do real. Mas tal movimento não significa que exista uma idealização ou uma conceptualização apriorística do desenho, significa apenas que o desenho existe no apelo que faz à anamnese, à reminiscência, à evocação do dom inato, nos pontos de convergência das inflexões da própria linha, a partir dos quais se inflectem as curvas e as contracurvas da relação do pensamento com o real.

Sprezzatura parece ser o nome adequado a este movimento, de acordo com a aparente negligência e facilidade com o qual se realiza, isento de esforço e de afectação, onde a prestezza do gesto assinala a existência da ideia no corpo, na materialidade da linha, a qual constitui o seu «projecto» (8).

A linha de inflexão maneirista.

Na classificação das imagens, proposta por Bernard Cache (9), a linha de inflexão maneirista define uma configuração própria que se distingue de outras. A repartição dos pontos de convergência das respectivas curvas da linha definem «efeitos de convergência», concavidades e convexidades que forçam a inversão e a reversão da linha à passagem por pontos de inflexão, de «dobragem» (10). A configuração da linha maneirista obedece nestes pontos a um deslocamento, a um traço de inflexão que estabelece a passagem-ruptura da primeira curvatura («alma») à contracurva («corpo») (11).

Com efeito o traçado linear da linha serpentinata (S) é como que interrompido, segmentado e contrariado, no momento e no ponto da inflexão. Existe como que uma súbita paragem que corta o fluxo da inflexão, algo como a presença de uma geometria «secreta», como se interviesse um plano, uma «rectidão» da linha, um descentramento, que explicasse a passagem da inflexão ao «contraposto» da curvatura. No exemplo exposto por Bernard Cache existe no ponto de inflexão da linha maneirista, não um ponto que se distende e se prolonga na continuidade da linha curva, mas um segmento que quebra e marca a inversão e a passagem.

Ao contrário da «formação» barroca, onde o ponto de inflexão desliza e se estende, provocando distanciamento entre os pontos de convergência das curvaturas, a linha serpentinata configura o movimento através de um momentâneo enquadramento com o qual ele se compõe . (12)
A configuração da linha maneirista combina em si mesma as três sequências de movimento: aceleração, ralenti e paralisia, como tensões da passagem do aleatório ao enquadramento, ou seja, como expressão da oscilação entre continuidade e descontinuidade, entre geometria e linha infinita.

A linha serpentinata do maneirismo é indissociável desta passagem pela geometria, verdadeiro contraponto pela qual ela exprime e manifesta, a partir do seu ponto de inflexão, o seu próprio modo de fluir e de captar, de fazer e de desfazer, o aleatório e a «regra».
A maneira é para o desenho o nome inominável desta ruptura, desta descontinuidade, desta inflexão, que procura paradoxalmente sustentar e inscrever a continuidade (im)possível da linha e da geometria, como memória, fragmento, ruína do espaço e da representação figurativa. Assim, a maniera torna-se o modo paradigmático desta contradição interna do desenho, nome no qual se re-inscreve a saturação e a cessação do seu próprio modo histórico.

A situação «teórica» da arte do desenho constitui-se no paradigma desta re-inscrição do nome, a qual constitui a sua categoria «moderna» e «intelectual». Para o pensamento gráfico de Francisco de Holanda, o neo-platonismo subscreve, de facto, a geometria como prioridade «mental», «secreta», na qual se entrelaça a linha serpentinata, para se substituir ao uso e ao abuso da dolce prospettiva (13). Desta maneira uma nova geometria «maneirista» impõe a tendência oval da «concha», do cartiglio, dos groteschi, do contrapposto, da reentrância e da «ruptura» nos elementos de composição arquitéctónica (14). Na verdade, a maneira extrai à lei e à estabilidade das formas puras da geometria o pressuposto interno de uma tensão nelas existente, que as transborda e as transforma em séries de dobragens e de situações de moldura.

A arte da moldura, a ilustração, a decoração, os grotheschi, são como que os elementos de excepção e de excesso que resultam desta relação entre inflexão e enquadramento, entre linha e geometria: expressão de um imperativo de sobriedade da ideia-desenho, como potencia do possível e da transformação, que explica ao mesmo tempo, a natureza-limite da linha, para além da sua função formal de delimitação e de contorno.

Na realidade, algo de impreciso, de «transformante» advém com esta linha (15). A adjectivação da linha serpentinata, indica a própria carga animista das forças que a compõem; a «fórmula pathos» (16) que contém. O movimento e a vida desta linha são pensados como aspectos e categorias singulares do seu pensamento: as próprias formas e «expressões» movendo-se agarradas aos seus enquadramentos, criando a «moldura» das suas próprias transformações.

Assim, do espaço da galeria ao álbum de desenhos, da imaginação à miniaturização figurativa, o encontro entre a inflexão e o enquadramento, entre o desenho e a geometria, favorece um tipo de contrato entre a ideia e a relação do real, entre desenho e moldura, entre projecto e «decorativismo». Na hipótese avançada por Riegl e Worringer (17), a natureza desta relação corresponde a uma vontade da arte como atitude de possessão e de compreensão da vida, como expressão de uma arte da vontade que não recusa a empatia nem a abstracção, mas que antes privilegia a captação de forças e de energias implicadas na relação entre o «sujeito» e o «mundo», entre o visível e o invisível: entre a vida e a arte.

Se na concepção neo-platónica de Holanda, tudo o que existe é percepção, a qual se reporta à essência inteligível da visão e do projecto divino, trata-se tão só de fazer despertar no pensamento do homem o pensamento do desenho: a ideia do desenho, como processo de criação e de criatividade, fazendo do artista o lugar do dom inato, o lugar de eleição e de selecção. A visão dotada do artista constitui para Francisco de Holanda esta inflexão necessária que abraça a moldura ética e política do desenho, e cujas categorias são a arte da memória e a arte do antigo, associadas na formulação «mágica» e omni-compreensiva da criatividade.

Ética e Política do desenho.

Mas o que impulsiona a «teoria» neo-platónica de Holanda? Como é que uma teoria das essências pode explicar o acidental, o encontro fortuito entre a geometria e a linha de inflexão, entre ideia e desenho?
Os desenhos de Holanda testemunham a existência de representações «intelectuais», «cultas» e eruditas, fazendo prova de «hermetismo», mas cujo enigma maior parece constituir a relação do Antigo com o moderno e a relação da arte com a filosofia.

Na interessante investigação conduzida por Deswarte-Rosa, os desenhos de Holanda propõem-se validar a hipótese de uma consciente conjugação entre arte e «reflexão» artística, entre «teoria» e religiosidade. Contudo, a sua interpretação iconográfica não inclui a relação do pensamento artístico com a linha de inflexão, com a realidade dos aspectos (18) gráficos da sua obra. Aliás, este é um aspecto não referido por Deswarte-Rosa, mas que o pensamento gráfico de Holanda, desenho a desenho, enuncia, cada imagem correspondendo à vontade de implicar e de exprimir uma universalidade da ideia, uma eternidade da criação visual, inseparável da geometria e da inflexão da linha, isto é, indissociável da «verdade» e dos seus efeitos.

Nos desenhos de Francisco de Holanda (19), o «compromisso» existente entre a geometria e a linha serpentinata permite compreender, para além da sua leitura iconográfica, a imagem afectada das poses e dos gestos, fazendo sentir com maior intensidade o traçado cursivo que dá a sensação de figuras «atarracadas», insistentemente agarradas à linha de horizonte, aos traçados de arcos de circunferência, à vectorização triangular, que preenchem e organizam o espaço «mental» das composições e a partir das quais elas se procuram elevar.

Da representação da arquitectura à figuração do espaço urbano, da figura humana à representação da paisagem, a sequência dos desenhos de Holanda é a expressão desta minuciosa relação, através da qual a realidade da imagem se ilumina enquanto expressão figural da linha, como se esta existisse independente do espaço que habita.

Do Álbum de Antigualhas até às Imagens das Idades do Mundo (20), uma mesma sequência da idea-desenho revela a autografia do artista, no tratamento «vazio» do espaço, onde se impõe, por vezes, a presença das figuras da «geometria platónica» e a expressão figural, «abstracta», da linha; a habilidade do miniaturista cruzando a mais «ilustrada» e a mais culta memória das imagens. Com o uso da cor os desenhos de Holanda tendem a acentuar ainda mais o «iluminismo» dos desenhos, reforçando o enigma da relação existente entre a visão interior da ideia e a imitação «tirada pelo natural», nesse espaço «inspirado», que cada representação confere ao enigma da figuração.

Nas ilustrações originais de Holanda, a virtude e a proeza técnica do desenho consiste em expor, sob suposição da ideia, «obra do entendimento e do espírito», as condições desta sua própria expressão morfológica. Claro está que aos sinais e aos sintomas de «rebaixamento» o artista contrapõe a declaração universalista da arte, que constitui com o enigma de cada imagem, a exigência terapêutica da República cristã (21).

A importância dos desenhos, a importância do pensamento de Holanda reside assim na maneira como ele põe à prova uma dimensão épica da arte, que sob vigilância da «teoria» passa a elucidar as condições das suas próprias fraquezas e equívocos, mas também as condições da sua própria excelência e coragem.

«Esta ideia é maravilhosa nos grandes entendimentos e engenhos, e às vezes é tal, que não há mão nem saber que a possa imitar nem igualar-se com ela» (22). No contexto da cultura europeia de Quinhentos esta declaração constitui uma provocação intelectual dirigida à arte portuguesa. Ilustração corajosa de uma genealogia da criação, onde os sinais de erudição comprovam que a existência do álbum das Imagens das Idades do Mundo, é o projecto de uma «história da redenção» (23), não só cristã, mas humana e individual, capaz de resistir ao imobilismo e à megalomania.

No ambiente da cultura artística portuguesa, a ideia-desenho de Holanda existe como declaração da sua própria «sobrevivência» enquanto intelectual e artista. Contra a ignorância, a inveja e a infâmia, que persegue por vezes o destino da arte e dos artistas, a voz de Holanda reclama, segundo uma linhagem «teórica» que ascende a artistas como Cennino Cennini, Alberti, Leonardo, e a diletantes como Paolo Pino, os pressupostos, não só da liberalidade das artes do desenho, como, sobretudo, da condição intelectual da criação artística.

No tratado Da Pintura Antiga, Holanda discorre sobre os argumentos fundamentais desta declaração de princípio, claramente derivados dos exemplos do Cortigiano de Castiglione, bem como de Aristóteles, na qual o desenho serve a educação «mais perfeita» de reis e de príncipes (24). No essencial, a «teoria» de Francisco de Holanda contrapõe uma complexa fundação epistemológica do desenho, que num primeiro momento implica a acepção de tratto (traço), ou seja, debuxo, pondo por consequência em risco o seu carácter divino e intelectivo, para por fim suspender a razão de ser da sua própria prática, pedagogia e aprendizagem (25). Algum cepticismo percorre a pretensão neo-platónica da arte.

Por um lado a dificuldade em superar o sistema da argumentação da retórica clássica, contra o qual se debate com furor, por outro, o «descontento» que sente, quando a bondade das mãos não chega para alcançar a ideia (26). Na verdade, a desconfiança platónica da arte é real. Por isso o pensamento de «vanguarda» de Holanda, seguindo o exemplo de Miguel Ângelo, exige condições extremas de autonomia e de vigilância sobre aquilo que faz. Sendo que o «enxertar huma arvore e vê-la crescer» é tão importante quanto as «riquezas que há em Oriente».

A ideia-desenho.

A história da imagem, a história semântica da ideia, na sua genealogia grega, consigna o ver ao saber, a imagem à «teoria», a arte ao pensamento (27). Toda a «cultura» visual existe sob vigilância e sob condição da vontade de saber, isto é, sob condição da filosofia. Por isso o acidental, a inflexão imprevisível, o erro, a falta, o lapso, e mesmo o pecado conduzem o destino da «cegueira» a uma antropologia ou, como diz Derrida, a uma oftalmo-patologia (28) da cultura, onde reside, desde a Antiguidade, a repartição e a partilha da visão e do visível, nas maneiras «ocultas» ou «reveladas» da arte e do pensamento.

O desenho seria como que o instrumento da pré-visão, da antecipação perceptiva e visual, da anamnese, no sentido platónico, capaz de guiar a ideia, a verdade e a justeza das formas. Para Francisco de Holanda o desenho existe de facto como nome da visão interior, que se traduz nas ocorrências corporais e materiais, nos gestos e nas ressonâncias do próprio corpo visionário: «ver com os olhos carnais o que vê com os do espírito» (29).

Sendo a essência da arte a incarnação da Ideia, o «esquisso» é então a declaração instantânea, a «velocíssima execução» do ver e do querer ver; o lugar de captura da singularidade no espaço visível da arte.
No Da Pintura Antigua, Holanda declara: «me atreverei a mostrar como tudo o que se faz em este mundo é desenhar» (30). Segundo esta concepção, que assume os contornos ao mesmo tempo metafísicos e pragmáticos Da Ciência do Desenho, escrito mais tarde em 1571, Holanda afirma que o desenho é: «ciência, não só aprendida por ensino doutros pintores: mas naturalmente dada por o sumo Deus gratuita no entendimento, procedida de sua eterna Ciência, a qual se chama Desenho, e não debuxo nem pintura» (31).

Para Deswarte-Rosa o pensamento de Holanda é a expressão da sequência histórica do humanismo, a qual se identifica através dos usos do conceito Idea. E o que a historiadora identifica, com sucesso, tal como o fizera Panofsky, é a existência de uma suposta adequação entre o contexto da filosofia neo-platónica e o pensamento da arte (32). Mas não basta afirmar a existência do conceito (idea) para argumentar o pressuposto ideal da arte, para identificar a pertinência de uma teoria da arte «neo-platónica».

O que a «reflexão» teórica de Holanda põe à prova não é a adequação de saberes ou preferências filosóficas «superiores» às exigências da arte, mas a contestação de uma pretensão que é identificada pela distância intelectual do artista, como aquele que pensa com a matéria e a imaterialidade do seu próprio pensamento.
Em primeiro lugar, porque não existe uma objectivação da arte como exemplo da ideia, mas uma formulação subjectiva do artista como aquele que pensa a arte (33). Mais do que uma determinação ideal da arte existe uma des-objectivação dos objectos artísticos, que revela a intenção superior do artista. A ideia é a prescrição subjectiva que excede a produção da arte, o princípio que vigia o «contentamento» ou o desejo dos objectos artísticos.

Porque se a arte existe, a confiança e a fidelidade da sua prescrição só existe sob a condição de relações que não pertencem apenas à arte ou aos efeitos da arte. A ética e a política determinam as relações necessárias para que o artista pertença ao projecto da arte, isto é, para que a arte seja pensada como pensamento subjectivo, na distância que constitui a articulação dos seus efeitos. A ideia não corresponde por isso a uma acumulação de saberes mas a um acontecimento, a uma ruptura da situação da arte já existente. A ideia em Holanda não é por isso a regra mas o acontecimento de desregulação da arte que importa delimitar: a «maneira» que irrompe no espaço saturado de uma configuração artística que cessa. A arte cessa quando o «vazio» essencial para que pudesse continuar, é preenchido pelo virtuosismo da técnica, não restando da singularidade e da verdade, isto é, da ideia, senão seus os efeitos, a «exterioridade» da pedagogia, a nulidade dos seus saberes.

A ideia é o turbilhão que desencadeia a (in)finitude de novos processos e imagens, de novas maneiras de fazer e de pensar. Uma ética e uma política do desenho são a maneira pela qual a sequência iniciada pela ruptura mantém a consistência do acontecimento, sem o definir ou o nomear, limitando os seus efeitos e a finalidade objectiva do seu destino.
A adequação da filosofia de Platão aos discursos da arte não pode realmente ter existido sem a questão colocada ao governo da arte. Se a arte existe, no pensamento criativo do artista, ela supõe que existe sob condições reais, colocadas ao seu próprio fazer.

A relação do pensamento com a arte coloca a questão da sua existência e da sua realização na relação com o pensamento do indivíduo e do Estado. Para o artista a relação é solitária, melancólica, tanto quanto ela se exige e se comporta como uma terapêutica do sensível diante dos seus efeitos, ou seja, como na situação radical do neo-platonismo, como uma terapêutica da cobardia, da suspeita e da dúvida, diante da verdade (34). Para o Estado, a arte existe na razão de ser dos seus usos, da sua finalidade. Trata-se contudo de não confundir o Estado com a realidade, tal como o faz a História com a sociologia.

O Estado representa um sentido da História, que no século dezasseis não se esgota na forma da sociedade. O Estado é o reflexo da realidade que se constitui como poder, enquanto organismo de reprodução de uma ordem social. Quando o artista pensa a relação da arte com o Estado, ele pensa o controle e a vigilância dos seus efeitos e perturbações sobre o público. Numa época que nos habituou a ver o artista como «agente» do Estado, sujeito à petição e à encomenda, ao gosto e aos caprichos do patrono ou do mecenas, pensar nos termos «teóricos» de Holanda, do «diable théorique», nos termos da terribilità de Miguel Ângelo, significa distinguir e relacionar o que a arte delega ao artista e ao Estado.

Para o «neo-platonismo» aquilo que liga a arte ao artista é o encontro de uma «certa» espiritualidade, não regulamentada, audaciosa e interior. Aquilo que liga a arte ao Estado é a espiritualidade mediada pela exigência da propaganda, pela ordem social que ela identifica. A Reforma e a Contra Reforma são episódios de uma trama de relações com o real , nos quais o indivíduo, a forma social e o Estado disputam a legitimação de uma forma espiritual superior. A arte soube à sua maneira entrelaçar a linha e o enquadramento de múltiplas forças, não só originárias do social ou do religioso mas sobretudo das imagens e do poder das imagens.

Em finais de Quinhentos, a vontade «neo-platónica» de Holanda confirma a existência do desenho, cujas categorias são a Ideia e o artista, a intelectualidade e a capacidade de fazer e de pensar. O nome desenho designa a força abstracta, a intenção e a intensidade do pensamento que força a definição das categorias do esquisso, do antigo, da anatomia e da fisiognomónica à criação da singularidade «militante» da «teoria» e do artista. Mas o pensamento de Holanda é também o pensamento que se reporta factual e historicamente à «viagem de estudo» a Itália, entre 1537 e 1540, bem como à prioridade do projecto para o qual foi mandatado por D.João III (35).

A «obra» de Holanda é por princípio uma investigação feita sob condições, que «por destino lhe coube em sorte» (36): singularidade de encontros, de entrevistas, de inquéritos e repertório de imagens, de desenhos, de projectos que obedeceu, sem margens para dúvidas, aos princípios da riverenza a Miguel Ângelo e aos princípios de vassalagem ao Rei de Portugal (37).
Francisco de Holanda, o «menor dos grandes desenhadores» (38) soube interpretar e importar o «moderno» da arte italiana, tendo ao mesmo tempo colhido a mais directa consequência do seu significado para o pensamento «universal» da arte.

Na verdade, Holanda pensou a existência da arte (bem como a sua inexistência) no lugar onde ela mais faltava, conseguindo fazer da prática do desenho o regime de uma possibilidade mais vasta, que significava pensar aquilo que existe diante daquilo que pode existir: «o Desenho foi meu capitão para fazer muitas cousas que não aprendi nem vi fazer nunca» (39).

Arte da memória.

Cinquenta anos antes de Lomazzo e de Zuccaro, o pensamento gráfico de Holanda procurou examinar a pertinência do desenho e da ideia, no espaço das relações entre arte e filosofia, entre teologia e pensamento, sem cair na tentação pacificadora do aristotelismo, na suposta divisão entre disegno interno e disegno esterno. Na realidade, na mesma época em que o «mago» Giulio Camillo Deleminio concebia L'Idea del Theatro, projecto ambicioso da arte da memória, com a qual procurava abraçar a compreensão do universo (40), Holanda ensaiava a pretensão de uma «Arte do Desenho da Pintura na República cristã, assim no tempo da paz como no tempo da guerra» onde tem lugar a «teoria» e a prática de uma linha de inflexão e de confronto entre ideia e desenho, como dispositivo de figuração e de criação, simultaneamente interna e externa, ética e política, existente e inexistente (41).

Atestada e legitimada na finitude das obras, em especial através dos textos e dos desenhos, endereçados a uma posteridade que hoje interpreta a sua ideia, Francisco de Holanda parece representar um momento sem consequências, para além daquelas que o «secretismo» da sua própria obra põe ainda em movimento. Talvez a situação «original» de Holanda, que Deswarte-Rosa contextualiza, revele uma única vantagem do pensamento do desenho, no seu tempo e para o nosso tempo. A ideia que declara a petição do pensamento contra a adversidade e as contrariedades a que a arte e o artista estão expostos.

Só uma «metafísica» permite de facto preparar e reclamar a categoria de intelectualidade do «desenhador», bem como o lugar da memória do Antigo, o lugar da divisão e da composição entre o sagrado e o profano, entre o saber e a fé. Segundo Deswarte, a fidelidade ao Antigo e a Vitrúvio torna-se a base histórica e o pano de fundo cuja implicação são as «teses» da Prisca Pictura (42), prova concludente da existência da verdade como algo de admirável, de profético e de divino.

A «teoria» do desenho de Francisco de Holanda será assim o nome de uma descontinuidade de maneiras e estilos que atravessa não só o pensamento mas também o espaço geográfico, físico e metafísico das imagens e da imaginação artística. Por toda a Europa o desenho é o nome «teórico» e especulativo, que existe por referência a uma multiplicidade homogénea de objectos, de procedimentos, de técnicas e de pedagogias. Mas se o desenho se identifica num tipo de objectos é porque a sua natureza não é absolutamente «conceptual», mas sim aquilo que na finitude e na sequência das práticas desenhativas se transforma e se desloca da «cegueira» do olhar à «hapticidade» visual.

Para que o desenho se tornasse «conceito», o seu nome teve que se expor, sob condição teórica, a uma transformação daquele que desenha. Desenho e desenhador são os elementos desta dupla transformação operada pela representação da história e pela intelectualidade do pensamento, que garante que o pensamento do desenho é pensável, ou seja, que o desenho existe como «teoria», como força teórica. O desenho é o nome «teórico», prático e alegórico, de modos de ver e de pensar, de pertencer e de dedicar.

Por isso na relação dos projectos que o desenho estipula no universo da produção e da circulação das imagens no séc.XVI e XVII, desenho e desenhador não constituem as simples derivações subjectivas de um destino, supostamente mais complexo da sociedade ou da realidade histórica. Na verdade, a relação dos projectos exibe o enquadramento das opções e das decisões livremente tomadas, que delimitam a sua própria multiplicidade heterogénea.

O nome desenho enuncia a sua existência, sob a condição subjectiva dos próprios usos e expressões, tornando-se assim uma operação mais vasta, que envolve a nomeação da ideia-desenho, como variável das inflexões de uma linha que serpenteia, na continuidade e na contiguidade das relações do real que constitui. A Ideia-desenho é pensável nas categorias que captam a singularidade da visão interior, ou seja, na relação do desenho com o seu próprio pensamento: ideia figural do corpo, estilização de forças, de gestos e de movimentos internos ao corpo: pensamento que dá corpo à memória e à imaginação compositiva. A idade «cega» do desenho substitui-se definitivamente à mimésis, e terá como destino, não a verosimilhança e a catarse, mas, a aprendizagem e a essência dos signos da arte.

VITOR SILVA
1999

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